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THE HESPERIDES BLOG

Uma Odisseia ladina:
o Homero de Moshe Ha-Elion

Por Richard Armstrong

Tradição de Marihá Barbosa e Castro

Kontame, Muza, del ombre astuto k’estuvo errando

mucho despues k’estruyo la santa sitadela de Troya,

i vido muchas sivdades de djente, i supo sus sensia,

i sufrio muchos males en su korason en las mares,

i perkuro de salvarse i a kaza trayer sus kompanyos.

Ma no salvo sus kompanyos malgrado ke lo dezeava,

porke a kavza de sus lokeria se depedrieron;

bovos kriados, los kualos los bueyes de Elios Iperion

se los komieron, i el les vedo el dia del retorno.

Algo de esto konta i a nos, dioza, fija de Zeus.

Conta-me, Musa, do homem astuto que andou errando

muito depois que destruiu a santa cidadela de Troia,

e viu muitas cidades de gente, e aprendeu sobre seus conhecimentos

e sofreu muitos males em seu coração pelos mares,

e procurou salvar-se e trazer seus companheiros para casa.

Mas não salvou aos seus companheiros ainda que o desejasse,

porque devido a sua loucura se destruíram;

meninos bobos, os quais os bois de Helios Hyperion

comeram, e ele [o deus] lhes vetou o dia do regresso.

Conte-nos algo sobre isso, deusa, filha de Zeus.

Assim começa a Odisseia na tradução de Moshe Ha-Elion para o seu ladino nativo de Salônica. Um projeto que ele empreendeu ao fim de uma longa vida, regada de traumas, penúrias e triunfos. O ladino, também conhecido como Judezmo, Djidio-espanhol, Djidio, Spanyolit ou Haketía, no caso das variantes do norte da África, foi uma língua comum entre os judeus sefarditas na região dominada pelo Império Otomano, e se baseia nas línguas ibéricas do século XV que as comunidades judaicas levaram consigo no exílio. O ladino de Salônica contém diversas palavras turcas, gregas, italianas, francesas e hebraicas, juntamente com algumas peculiaridades sintáticas distintas, mas ainda assim é bastante acessível para qualquer pessoa com conhecimento de línguas românicas. Lamentavelmente, é também uma língua em vias de extinção, que já entrou na fase “pós-vernacular” quando há cada vez menos falantes nativos.

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O começo do Gênesis e do Pentateuco de Constantinopla de 1547, flanqueado pela traduções para o ladino e para o grego, com o targum aramaico na parte superior e o comentário Rashi na parte inferior. Do Ladino Pentateuch (Constantinople, 1547), edited by Moshe Lazar, Labyrinthos, 1988.
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Moshe Ha-Elion (1925–2022) mostrando a tatuagem de identificação do campo de concentração
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Primeira página da La Djovenika al Lager, em caracteres tradicionais de Rashi e caracteres romanos na parte inferior. Do Kampos de la Muerte, Instituto Maale Adumim, 2000.
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"Menorah em chamas", 1997, por Nandor Glid. Este foi o primeiro memorial do Hocalusto na Grécia a ser construído em espaço público. Em 2006, foi movido para a praça de Eleftherias, local do "Sabbath Negro" em 11 de julho de 1942, quando homens foram reunidos e registrados para realizar trabalhos forçados, a primeira ação antissemita após a ocupação alemã de Thessaloniki.
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A primeira página da Odisseia, co-traduzida por Moshe Ha-Elion (o ladino está à esquerda) e Avner Peretz (o hebraico está à direita)

Como chegou, então, uma variante do espanhol a ser falada na Grécia, Turquia, Bulgária e outros locais do Oriente? Tendemos a pensar em 1453, a data da conquista otomana de Constantinopla, como o momento decisivo em que a cultura literária grega se alastrou para Ocidente, à medida que os eruditos e suas bibliotecas se deslocavam de Bizâncio para a Itália e a Europa ocidental. Contudo, 1492 é também um momento crucial: a data do decreto de Alhambra na Espanha, que exigiu que todos os judeus do reino de Castela e Aragão se convertessem ao cristianismo ou então partissem. Os primeiros exilados foram recebidos pelo sultão otomano Bayezid II, e muitos se estabeleceram em áreas urbanas como Istambul, Sarajevo, Sófia, Esmirna e Salônica (Tessalônica). É uma ironia histórica interessante que a Tessalônica, cidade outrora conhecida por sua erudição homérica na época de Eustácio, arcebispo dessa cidade no século XII e autor de extensos comentários consultados por especialistas até os dias de hoje, se transformara durante o período otomano na cidade mais judia do mundo, o único porto do Mediterrâneo que fechava durante o Sabá. Os judeus trouxeram as primeiras imprensas ao Império Otomano, produzindo volumes como o Pentateuco de Constantinopla em 1547, que dispõe o texto hebreu flanqueado por traduções contemporâneas do ladino (à direita) e do grego moderno (à esquerda) e coroado pelo tradicional targum - uma tradução aramaica usada tradicionalmente pelos judeus para a compreensão do texto sagrado. Abaixo disso é possível ver o comentário medieval de Rashi.

Apesar de hoje a Tessalônica ser a segunda maior cidade da Grécia e sediar a maior universidade dos Balcãs, ela somente passou a fazer parte do estado grego moderno em 1912. O influxo de gregos da Ásia Menor depois de 1922 gradualmente transformou o caráter da cidade, mas conservou uma numerosa população judaica de língua ladina até as vésperas da Segunda Guerra Mundial. Moshe Ha-Elion (1925-2022) foi um dos poucos sobreviventes da comunidade judaica original em Tessalônica. Entre 90 e 95 por centro dessa população pereceu no Holocausto, incluindo praticamente toda a família de Ha-Elion. A perda dessa vibrante comunidade judaica e de sua língua transformou o caráter da cidade de maneira permanente. Daí a natureza heróica do esforço de Ha-Elion para monumentalizar a língua de sua comunidade em traduções que seriam importantes realizações literárias em qualquer língua. Em reconhecimento de seus consideráveis esforços para manter o ladino vivo, Ha-Elion foi agraciado com a Ordem do Mérito Civil pelo rei Felipe VI da Espanha em 2017. Contudo, ele não foi ainda homenageado na Grécia por este projeto cultural distintamente judaico-grego. Talvez um dia ele seja reconhecido pela Academia de Atenas do mesmo modo que o seu contemporâneo Giorgos Psychoundakis, combatente da resistência grega na Segunda Guerra Mundial, que foi honrado em 1981 por suas traduções da Ilíada e da Odisseia para o dialeto cretense.

A virada para a tradução homérica foi o último dos esforços literários de Ha-Elion. Após abandonador o campo de concentração nazista de Ebensee, Ha-Elion imigrou para o Mandato Britânico da Palestina em 1946 e construiu uma carreira na nova nação de Israel nas Forças de Defesa de Israel e depois no Ministério da Defesa. Assim como muitos sobreviventes, passaram-se décadas até que Ha-Elion fosse capaz de escrever um testemunho de suas experiências em Auschwitz-Birkenau e outros campos de trabalhos forçados, o qual ele publicou em edições em hebraico, ladino e inglês. Em seguida, ele se voltou para a escrita desses relatos em verso ladino, na forma tradicional da kopla, e os publicou em alfabeto Rashi e Romano (ver o exemplo). Em uma coleção intitulada En los Kampos de la Muerte (Nos campos da morte), Moshe escreveu uma longa balada, La Djovenika al Lager (“A donzela no campo de concentração”), sobre sua irmã Nina, que morreu pouco tempo depois chegar a Auschwitz. Contudo, ele escreveu o poema como se ela tivesse sobrevivido por mais tempo, sucumbindo ao fim por inanição; na verdade, ele estava escrevendo sobre suas próprias experiências de fome, esgotamento e desespero através dela. Ele transformou o poema em música e tinha a esperança de que a obra se convertesse em uma espécie de hino do Holocausto. Os outros dois poemas longos de Los Kampos descrevem como os prisioneiros comiam o pão e a longa provação da marcha da morte que o conduziu de Auschwitz para Mauthausen ao fim da guerra.

Com o incentivo de Avner Peretz, um poeta israelense hebreu-ladino que traduziu En los Kampos de la Muerte, Ha-Elion começou a tradução completa da Odisseia e, mais tarde, terminou a Ilíada, publicando ambas em edição bilíngue com a tradução para o hebraico de Peretz. O trabalho de tradução foi bastante difícil, já que a lexicografia ladina ainda era inadequada, e o corpus homérico aborda muitas questões técnicas distantes da experiência moderna. Ha-Elion estava decidido a embasar sua tradução tanto quanto fosse possível no ladino salônico, e recorreu a textos ladinos antigos, como a tradução da Bíblia Hebraica publicada em Constantinopla pela Sociedade Bíblica Britânica em 1873. Ambos os tradutores trabalharam estritamente em uma tradução verso por verso, e também reproduziram o hexâmetro datílico no ladino e no hebraico. É notório que Ha-Elion não parece ter consultado nenhuma tradução castelhana ao longo do processo, ainda que Peretz tenha admitido que recorreu ao Chicago Homer para o seu texto em hebraico.

Como Peretz me explicou, este projeto pretendia ser uma prova real da capacidade literária de um ladino ocidentalizado, e a obra de Ha-Elion parece certamente uma conquista ambiciosa para uma língua que viveu principalmente na tradição oral e na canção popular. Mas o ladino, como mencionado anteriormente, também possui uma larga tradição como língua de tradução estrita que remonta à Idade Média espanhola, quando era a “língua vernácula bárbara” (la'az), usada para traduções orais da Torá e outros textos hebraicos em contextos rituais. Houve, certa vez, uma rica tradição de textos bíblicos aljamiados na Espanha - escritos em língua vernácula romântica com caracteres hebraicos -, entretanto, a maioria foi queimada pela Inquisição devido ao decreto de Alhambra de 1492. Ainda assim, a tradição de ladinamento ou tradução bíblica está representada por alguns manuscritos conservados, assim como por traduções da Bíblia Hebraica para o castelhano por tradutores convertidos. Dessa forma, em certa medida, Ha-Elion trabalhou em uma tradição de tradução aproximada que remonta a séculos. No caso de Homero, contudo, ele traduziu como um grego (convertido em cidadão israelense) quanto como um judeu, em conexão com a sua educação em um Ginásio grego em Tessalônica antes que a guerra mudasse a sua vida.

Portanto, essa tradução de Homero é uma notável declaração de um status secular de ambas as línguas: do ladino e do hebraico, lado a lado, transgredindo os comandos em sua versão próxima ao original de deuses e deusas homéricos. A dupla tradução, contudo, é talvez a primeira de sua espécie ao longo da história da tradução homérica: o ladino não está ao lado do texto original em grego, mas sim de uma tradução em hebraico cujo objetivo é guiar o leitor israelita na compreensão do ladino, língua que agora está monumentalizada por meio da poesia de Homero. Ha-Elion morreu no primeiro dia de Novembro, em 2022, e suas traduções permanecerão como um legado único.

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Richard Armstrong
University of Houston

Richard Armstrong é professor de estudos clássicos na Universidade de Houston. Sua pesquisa trata da recepção das culturas grega e romana e é autor deA Compulsion for Antiquity: Freud and the Ancient World (Cornell UP), entre outros capítulos e artigos. Ele é coeditor da série Classical Memories/Modern Identities da Ohio State University Press.

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